Livro memrias de um cabo de vassoura pdf




















Tenho primos que so portas, janelas e se contentam olhando o movimento da rua. Alguns, to orgulhosos no. Fraco destino, para quem vivia na altura e sonhava, na pior das hipteses, ser, pelo menos, teto ou armao de telhado, coisa que, para ser vista, obriga o bicho homem a levantar a cabea.

Ser pisado e repisado o dia inteiro, tbua humilde de assoalho, por ps desconhecidos, de sapato sujo, triste para quem j foi rvore e enfrentou raios e ventanias. Tenho visto e ouvido muita queixa pela vida a fora.

Mas o triste, mesmo, a suprema humilhao para quem foi rvore, acabar caixo de defunto. Esse era o grande terror de meus irmos de madeira, quando aguardvamos, cheios de inquietao, no depsito, o nosso aproveitamento industrial como costumava dizer, em nossas conversas noturnas, o pesado porto de peroba, j industrializado e veterano.

Lembro-me muitas vezes do porto a nos gozar: Vocs falam muito, mas vo acabar, embaixo da terra, agentando cadver Eu, que ainda era tronco, madeira sem muita categoria, pelo que notava na conversa dos homens, ficava gelado.

Se pudesse, pelo menos, ser poste de iluminao, seria um consolo. Mas poste de madeira, com o tal progresso dos homens, vem perdendo o cartaz h muito tempo Destino de quem foi rvore ou galho dureza Os homens que nos utilizam e nos utilizaram, desde o comeo dos tempos, cortando, serrando, aplainando, enfiando pregos, so de uma. Pensam que madeira no tem alma. Classificam-nos entre as coisas "inanima- das". Os seres animados so eles.

Eles e os bichos. E quando falo bichos, digo desde o leo, que nobre e valente, o tigre, que ligeiro e feroz, a guia, que domina os cus, at cobra traioeira, covarde e venenosa, que se arrasta no cho, e mesmo a miseriazinhas insignificantes como a pulga, sugadora de sangue humano em casa onde no h limpeza e DDT, e ao cupim, que destri a madeira, principalmente a de natureza mais frgil, como o meu caso, que no sou carvalho nem jacarand, sou apenas pinho.

Para o nosso grande inimigo o homem, no o cupim , ns no passamos de "coisa". Que pode ser aproveitada de mil modos, sempre para satisfazer exclusivamente ao seu egosmo e aos seus interesses imediatos, com uma indiferena total pelo que possamos sentir.

Nunca passou pela cabea desses monstros o que pode passar pela cabea de uma rvore, ou pelo corao, quando um homem se aproxima de machado em punho. E ningum pode ter idia do que , para qualquer de ns, depois de corta aqui e corta ali e desce o machado ou passa a plaina, a viso de um simples prego.

Como no temos o dom de ficar arrepiados, o sofrimento puramente espiritual. O prego trazido por mo impiedosa, posto contra ns, em posio vertical, o martelo se ergue, desce a pancada fatal. O prego entrando A madeira rasgada E a ironia de. Vingana da gente quando o sujeito erra o golpe e acerta, no no prego, mas no dedo Pior, porm, do que machado, serrote e prego, destino trgico e sem conserto, a madeira que o bicho homem utiliza apenas como lenha.

Destino de lenha fogo! Esquecido esse negcio de prego e maus-tratos que sofremos ao longo da vida, claro que h muita coisa bonita no destino da gente. Ser barco, deslizando flor das guas Ser mastro de navio Ser pau de bandeira, o pessoal batendo continncia Ser portal de palcio, ser porta de igreja, ser altar bem trabalhado a preparao dura, mas o resultado compensa , ser mvel de luxo, ser bero de criana, acabar escultura, so coisas que nos consolam de qualquer sofrimento: serrote, serra mecnica, entalhe de pancadas cruis Eu tive um colega colega em madeira, no na profisso que viajou muito.

Esteve em Congonhas do Campo. Conheceu um santo, no de pedra sabo nem de mrmore, de madeira. Vocs precisavam ver o orgulho com que ele dizia: Eu fui esculpido pelo Aleijadinho Vem gente me conhecer de todos os cantos da terra Claro que essa conversa s ns entendemos. Nossos temores e alegrias escapam aos homens,. Que so como as dos homens, as mais diversas. Como entre os homens, h madeira para tudo. H madeira cujo sonho ser cadeira, por exemplo.

A mim, a coisa sempre repugnoume. No gostaria de ver gente sentada com aquela parte em cima de mim E a verdade que h madeira que gosta de ser pisada, se alegra em ser cho H pau para toda obra. H gosto para tudo. Mas h madeira que preferia at ser lenha a ser cano de espingarda, por exemplo.

Em compensao h pau que gosta de abrir cabea de homem, manobrado por outros homens, nessa horrvel rivalidade que separa os seres humanos. Uma coisa eu digo: tenho visto de tudo. Tenho visto homem brigando com homem, oprimindo o homem, perseguindo o homem. Mas nunca vi madeira brigando com madeira, pau batendo em pau, a no ser quando manejado por homens. Que estes, sim, raramente so flor que se cheire No vou contar tudo o que vi e sofri no depsito.

Nem na marcenaria para a qual fui transferido, depois que dois ou trs sujeitos bigodudos estiveram discutindo preo e condies ao nosso lado. Fomos vendidos s toneladas como escravos, um carregamento gigantesco de pinho. Nosso aproveitamento industrial estava traado e ainda no sabamos o que seria de ns. Como caixote a gente tem chance de correr o mundo. Virar msica E ainda mais pinho nacional?

Vai esperando Descobri logo que os da nossa espcie tinham cotao muito baixa no mercado. Mvel barato. Casa humilde. Utilizao inferior. Eu me encolhi mentalmente. Hoje eu no quero nem lembrar o que foram aqueles dias de espera. Nem vou contar o que passei quando vi aqueles tornos mecnicos, as serras eltricas, todo aquele instrumental que nos iria estraalhar.

E quanto sofri quando um cara, que examinava lote por lote e tronco por tronco, separou o meu e disse No conto mesmo. Meu velho tronco foi transformado em tronquinhos, em varinhas finas e redondas, que eu no podia atinar para o que podiam servir. Sei que fui vendido, num grande lote de tronquinhos iguais, a um fabricante qualquer. Num caminho nos meteram. No vimos. O caminho era fechado. O caminho saiu, rodou, parou, rodou de novo, rodou e parou um infinito de vezes.

Ao fim de muito rodar, parada definitiva. Abriu-se a porta. Veio um. Da a pouco, torno outra vez. Fizeram-me, numa das pontas, uma espcie de pescoo. Veio algum de lixa na mo e nos deu um vago polimento. E quando dei por mim, tinha na outra ponta uma barba espetadia, presa a mim por um troo de lato e tome prego!

Fiquei muito tempo sem entender. Fui amarrado, viajei de novo, acabei num armazm. O vendedor apontou para o nosso lado. A mulher veio, examinou uma, examinou outra. Eu desconfiava, eu intimamente sabia, mas no queria acreditar. Agora no tinha mais dvidas No passava de cabo de vassoura, um msero cabo de vassoura S quem foi cabo de vassoura pode avaliar o que eu passei.

A mulher me pegou muito sem jeito, vrias compras numa sacola meio rasgada, e saiu para a rua. Eu queria apreciar o movimento, mas ia de cabea pra baixo. O bigode de piaava estava l no alto eu teria de agentar aquele cara muito tempo agarrado a mim e gozava a minha humilhao.

Ele via e contava. Vem ali uma morena daquelas, de parar o trnsito D pra ver? No respondi. Alta pra chuchu Estamos numa rua importante Eu s via o cho e em posio muito incmoda. Papis rasgados, muito p de gente, indo e vindo, sujeiras de toda qualidade: casquinhas de sorvete, caixinhas de chiclete, latas enferrujadas, pedaos de vidro, cascas de frutas.

Algum, um pouco adiante, escorregou numa casca de banana e foi ao cho. Eu vi de perto o dono do escorrego, todo machucado. Em primeiro lugar, eu no repito essas coisas.

Em segundo lugar, eu estava com pena, o infeliz se machucou muito. Ento isto coisa que se faa? Deixar casca de banana na calada? Mas o homem j estava de p e o resto, ou o rosto, eu no podia ver. Sei que ele saiu resmungando e a parte propriamente vassoura do meu novo estado ria com uma inconscincia e uma crueldade que tinha qualquer coisa de desumano. Ou melhor: humanssima Divertida ela estava l em cima. No dava pra ver. Mas fiquei sabendo que a vassoura estava de bom humor e contava tudo, s para me machucar.

O mundo uma beleza! O bicho homem sabe fazer coisas! O homem maravilhoso. As mulheres, ainda mais Ela estava divagando. Eu queria era saber o que estava na vitrina. Mas no ia dar a confiana de perguntar. Felizmente ela estava na base do massacre e falou tudo. S brinquedos de luxo! Coisas finas! Coisas fabulosas!

Era a primeira vez que eu ouvia a palavra. Foguetes astronuticos! Eu ouvia tudo aquilo sem entender muito ainda no estava habituado com o mundo dos homens e, no fundo, embora humilhado, admirava a capacidade rpida de conhecer as coisas humanas que a minha parte propriamente vassoura vinha demonstrando.

Eu sou a parte de cima. Eu sou a cabea! E gargalhava com o maior desprezo. Felizmente a minha humilhao no durou muito. Eu, alis, tinha a intuio de que assim ia ser. Nossa dona entrou numa casa enorme. Eu, naturalmente, ao contar estas coisas e ao dizerlhes o nome, no quero dar a entender que j as conhecia, fui aprendendo com o tempo Subiu dois degraus de mrmore o nome eu soube depois e parou diante de uma espcie de gabinete, de onde descia um barulho crescente e.

Era um elevador que baixava. No gostei da frase. Vinha da porta do elevador. No foi ouvida pela nossa dona os humanos so incapazes de penetrar a alma da madeira. Ela estava se queixando do calor da rua e do preo das coisas. O dinheiro no compra mais nada! Havia uma outra dona no elevador. A nossa continuava a falar. Sabo o preo do presunto, antigamente! E voc sabe quanto eu paguei por esta droga de vassoura que voc est vendo?

Eu comprei uma igual. E o pior que no vale nada Fiquei espera de uma reao. No veio. Minha parte vassoura, que era o objeto de tamanho desprezo, fingiu no ouvir. A mulher continuava. Eu estava comeando a entender. Esfiapa-se toda A gente tem que varrer a prpria vassoura que se desfaz Uma vergonha!

Uma vergonha Aqui embaixo eu no ouo nada direito Mas a barba pretensiosa, l em cima, no quis responder. Tinha perdido completamente o rebolado Mas o bom ou o pior A dona saa do elevador, tocava uma campainha, uma porta essa era preguiosa e resignada se abriu. Entregou-nos cozinheira, depois de colocar sobre uma mesa de frmica tenho um nojo de plsticos Eu acabava de travar relaes com meu primeiro inimigo: a cozinheira.

S me reconciliei com ela, tempos depois, quando a vi queixar-se copeira das durezas de sua vida, um filhinho doente, o marido desempregado. Ser gente nem sempre um cu aberto. S no precisarmos comer, vestir, fingir importncia, como acontece com os humanos, j uma grande coisa. Muita madeira que se queixa da vida, se pensasse no que acontece com os nossos exploradores, grandes e pequenos, ou que se enche de inveja quando os v refestelados numa poltrona a tomar usque ou bater papo, ficaria muito feliz dentro da sua passiva condio de utilidade domstica, tantas vezes humilhante.

Fome, pelo menos, no conhecemos. Nem dor de barriga, que uma das coisas mais feias que eu tenho visto nos humanos.

Mas preciso voltar minha cozinheira. Ela me pegou pelo meio, olhou-me de cabo a rabo, ou melhor, de cabo vassoura, e perguntou:. A dona tinha, mesmo, jeito de Sara. Pra rimar com taquara. Taquara rachada. Era uma voz desafinada e desagradvel. Tudo muito ordinrio Tratava-se do meu inimigo no 2. Ao lado havia uma lata de lixo, repleta de cascas de batatas, sementes de tomate, restos de comida, leo a escorrer de uma lata de sardinha, com a lngua pra cima, com ar de fome ou de sede, um saco vazio de acar, borra de caf, barbante, poeira, papel amarrotado, jornal amassado, um par de sapatos velhos, de boca aberta e buraco na sola.

Dizer que eu ou que ns Se era isso o que ela pretendia, conseguiu em cheio. No meio da testa Me bota pra quebrar Quando o destino de cabea baixa, o melhor pensar noutra coisa. Ningum me tinha dito nada. Eu sabia que era vassoura. Ou cabo de Mastro de navio, no era. Pau de bandeira tambm no. Nem era bandeira No era espada. No era. No era avio. No morava em Niteri. No tinha sido talhado pelo Aleijadinho ou por qualquer artista importante, para vir gente do mundo inteiro me conhecer.

No era colar em pescoo de madame. No era aparelho de televiso. No era taa de champanha. No era jia. Era aquela coisa comprida e magrela. Tinha aquela barba pobre l embaixo Agora a barba de piaava estava l embaixo e eu nem notara!

Eu, de cabo, na quina da parede, ela de focinho no cho, ns dois emendados para o resto da vida, a um canto da cozinha, cheirando a alho e cebola, s podia ser aquilo O cho de azulejo barato estava cheio de restos de tudo. Havia at gua e caf derramado. Fechei os olhos da alma e procurei mudar meu pensamento. Voei para a floresta onde crescera livre e me fizera rvore.

Recordei com saudade as carcias do vento. Lembrei os banhos de chuva, que eram freqentes no vero. Tinha a impresso de estar vendo todas as rvores agitando os galhos a pedir o socorro do cu, quando trovejava e os relmpagos estalavam e se ouvia de longe uma colega atingida por um raio infeliz.

At isso eu lembrava com saudade. At essa agonia Depois pensava em passarinho cantando e colegas floridas, uma quaresmeira muito nossa amiga, um velho mulungu do norte, que era todo flor no meio do ano, um operoso joo-de-barro que fez casa quase ao meu lado, num galho robusto.

As palavras da cozinheira, que provocava a copeira, no me devolveram terrvel realidade. Voltei para a floresta. Revi aquele cara do machado, que nos derrubou. Pensei no velho porto de peroba, do depsito onde morei muito tempo. Voltei ao velho mulungu meu vizinho, to orgulhoso de parecer toda uma flor gigantesca, visvel e admirada a grande distncia pelos que passavam na estrada. Nisso, a patroa entrou de novo na cozinha. Isso tambm demais, muita sujeira!

Comprei para enfeite? Me diga! Quero tudo isso muito limpo, t bem? Sem palavra, a Maria me agarrou pelo meio e comeou a esfregar, com fria, minha barba no cho. Nas cascas, no caf derramado, no lixo. Eu era apenas o cabo. Foi um alvio. A minha parte propriamente vassoura que passava o lixo na cara Devo confessar, muito envergonhado, que, quando senti a barbicha da piaava misturada no lixo, esfregada com raiva nas sujeiras do cho imundo eu me lembrei do que ela fizera comigo, na vinda do armazm, e tive um sorriso de vingana.

A infeliz me gozara na rua, j contei. Julgava-se mais importante. Estava, no momento, por cima, e se gloriava disso. No foi companheira. Falava, orgulhosa, no que estava encontrando, nas. E ria, no propriamente na minha cara, mas na minha ponta. Ela, agora, estava conhecendo a beleza do mundo O focinho no azulejo sujo A poeira a subir-lhe pela barba. Ela amassada contra o cho. Enfia aqui. Enfia ali. Arrasta imundcie. Sente o cheiro dessa meia lama Conheceu, papuda?

Mas acontece que, onde ela ia, eu ia tambm. Do lado de cima, mas ia. Era levada contra a sujeira, mas eu ia atrs. Maria a introduzia embaixo do fogo, que a patroa comandava a operaolimpeza, eu tinha que acompanhar sua triste visita. E eu logo percebi que a sua humilhao era minha tambm.

Talvez pior. Para todo mundo, ela era "a" vassoura, eu apenas o cabo. Sem ela eu seria apenas um pedao de pau e eu ainda me lembro, no meu tempo de rvore, do destino que tinham os pedaos de pau: fogo de caipira, lenha para o fogo Se ela estava errada antes, quando se imaginava por cima, eu erraria agora, tendo a mesma atitude.

Na realidade e no fundo, ns no ramos santo de igreja, nem trono de rei, nem cadeira de balano. Na sala pegada havia uma. De palhinha e madeira, naturalmente. Graciosa, leve, meio danando, meio cantando. Quem agentava o pior dos humanos era a palhinha do assento.

Em cadeira de balano os homens ficam bons, como em nenhum outro lugar. E a cadeira vai e a cadeira vem, macia e calma. Que diferena, meu Deus! O fato que eu no nasci cheio de curvas acolhedoras, mas reto e rijo. Pra cadeira de balano no servia. Tinha o destino traado, no tal aproveitamento industrial de que falava o porto. Fugir da vassoura eu no podia. Estvamos intimamente ligados. Fugir quele emprego, tambm no. Eu no podia fintar a cozinheira, quando ela me pegasse.

Era fazer o que ela quisesse: a cara no lixo! E s no lixo da cozinha, que nos outros cmodos da casa a famlia usava aspirador de p, um aparelho de voz grossa e metido a bacana. Esse nem sequer nos dava confiana. Estava guardado num armrio embutido na cozinha e, quando saa para o trabalho, nos outros cmodos da casa, tinha pra mim ou pra ns um ar de profundo desprezo. At hoje no entendi por qu. Ns, pelo menos, no precisvamos engolir a sujeira Acabada aquela primeira operao- limpeza, que tanto me atormentou, mas na qual me identifiquei com a minha parte vassoura e passei a sentir por ela uma profunda simpatia, tive uma grande surpresa.

A operao fora dura. Dona Sara de voz de taquara rachada tinha sido impiedosa. Passa a vassoura Maria obedeceu. Est horrvel! Ela viu e varreu. Ou melhor, ns varremos. Voc muito relaxada, Maria! Olha s aquilo Maria olhou na direo do olhar de Dona Sara, o teto. Maria suspirou. O jeito que ela deu foi nos virar de cabea pra baixo.

Quer dizer, a parte vassoura pra cima, a parte eu no rumo do cho, como no passeio pela rua. Ergueu-nos na ponta do brao, ergueu-se na ponta dos ps, com esforo ela se queixava de dores nas costas e tocou a piaava nas teias de aranha. Agora eu vou Me deu aquela raiva Mas logo tive pena. A coitada no terminou a frase. Estava toda enrodilhada naquela teia escura, que lhe entrava pelos fios, um trabalho danado, depois, para a Maria tirar E logo em seguida eu estava na minha posio natural e impulsionava, sob o comando da cozinheira, o triste varrer das mil sujeiras, at que Dona Sara, de voz de taquara, se deu por satisfeita.

V se conserva agora a casa limpa Se no, ele acaba queimando. Voc nunca aprende. Taquara rachada! Sempre se queixando Sempre reclamando Quando ela nos favoreceu com a sua ausncia, Maria nos deixou outra vez no mesmo canto onde havamos comeado nossa triste misso.

Foi ento que eu entendi bem minha parte vassoura e me identifiquei com ela. Estvamos no tal canto da cozinha, eu por cima, ela por baixo, toda ruim Molhada - Empapada de poeira, teia e outras tristezas da vida moderna.

Viu que limpeza perfeita? Eu sou a maior! Ela cultivava o otimismo, por sistema. Procurava ver o lado melhor de todas as coisas. Vamos botar esta cozinha nos eixos! Acabar com essa pouca-vergonha! Sorte que a nossa inimiga n o 1 no entendia lngua de madeira. Alis, no devia ser muito forte em linguagem humana, porque a todo momento eu ouvia a patroa gritar-lhe: Ser que voc no entende, criatura?

Tudo o que eu mando, voc faz ao contrrio Mas foi injustia minha cham-la de inimiga n o 1. Foi a primeira pessoa cuja inimizade eu senti, diferente. Comeou logo xingando, mal eu entrei na cozinha.

Mas no era m. Era uma sofredora. Acordava cedinho, antes de todo mundo na casa. Virava-se o dia inteiro. Comeava a trabalhar antes dos outros tomarem o caf e ainda estava arrumando e ajeitando coisas depois que todo mundo estava dormindo, ou vendo novela na televiso.

Lava, esfrega, corta, descasca, bota no fogo, tira do fogo, ferve a gua, passa o caf, pica a cebola, mi a carne, limpa o camaro, vigia a panela, passa o bombril na frigideira, bate a omeleta, esconde o prato quebrado, que a patroa est chegando Quem a via resmungar o dia inteiro tinha at medo. Parecia uma fera. A colher caa no cho.

A faca estava sem corte. A patroa chamava. Mas tudo aquilo era aparncia. Com o tempo fui vendo, fui me convencendo.

E mesmo quando ela esfregava a minha cara no cho, isto , a minha cara-vassoura, porque no havia outro jeito.

E s quando a patroa reclamava Eu achava timo. Ficava na moleza, no meu canto, olhando a vida, ouvindo rdio. Nesse ponto, eu no tinha nada em comum com o meu complemento de piaava: estava muito pouco interessado em botar a cozinha nos eixos.

No custava nada usarem o aspirador de p na cozinha tambm Mas a famlia no era somente a Maria, Dona Sara e a arrumadeira, que no trabalhava na cozinha. Tinha Seu Conrado, fregus habitual da cadeira de balano. Tinha o Renato. Tinha o Mariozinho.

Quando eles estavam em casa, de volta da escola, sempre havia mais gente. Gente em comeo. Criana comeo de mulher ou de homem. S que rvore, mesmo quando pequena, no chora, no faz barulheira, no precisa estudar, no escorrega, no grita, no xinga, no corre, no brinca, no pula, no desobedece. Criana, principalmente, desobedece Basta dizerem "no", ela faz. E s vezes se d muito mal Ela brinca e se queima.

Por no obedecer, um amigo do Mariozinho ficou trs meses no hospital. No fique na chuva! Renato teve uma semana de cama, com uma tal de pneumonia, que uma doena cacete. Alis, no gosto desse costume dos homens de nos usarem como termo de comparao para as coisas desagradveis. Foi sem querer que eu falei "doena cacete". Cacete pau, madeira, da nossa famlia.

Aprendi com os humanos a usar a palavra, mas no acho direito. Quando querem dizer que algum, da confraria deles, no tem as-. Quando se ameaam entre si, nas suas disputas, falam em "baixar o pau! O que mais me irrita, porm, que, quando querem chamar algum de cnico, de mentiroso, dizem que o infeliz "cara-de-pau!

Algum j viu pau mentir? Algum j viu madeira fazer mal? Se o pau desce na cabea de algum, foi homem que o moveu. Por conta prpria, por maldade prpria, nunca. Se alguma vez galho de rvore desabou matando gente, foi raio, foi vento, foi velhice, foi imprudncia de quem ficou embaixo Eu mesmo ainda h pouco, ao contar as minhas impresses na cozinha de Dona Sara, quando me vi insultado pela Maria, pedi em pensamento dona da casa: "Me acerta!

Me acerta no meio da testa! Porque eu iria ficar envergonhado para o resto da vida A gente nunca deve seguir os maus exemplos que essa raa nos d.

Devemos assistir a tudo o que eles fazem de errado quando erram, claro com a maior cara de pau. Mas no bom sentido Mas eu estava falando nos meninos. De casa, eram dois. Na casa, quando eles estavam, havia sempre muito mais. O Ivzinho. O Ricardinho. O Fernando. A Cludia. O Gil Vicente. Cada um mais levado que o outro. Era sempre a exclamao da Maria quando os via chegar. Mas aquilo, depois fiquei sabendo, era da boca pra fora.

Ela adorava criana. Porque alegrava a casa. Porque era uma boa desculpa, quando alguma coisa saa errada. E porque atrapalhava completamente a vida da Marlene a arrumadeira, no a cantora de rdio. Esta ficava quase doida com a desordem que eles faziam pela casa toda. Eu acabei de encerar! Olha que eu conto Dona Sara Maria, que s vezes ficava de olhos cheios d'gua devia estar pensando no filhinho doente , intervinha: Deixa.

Criana isso mesmo. Precisa brincar Eu, do meu canto, mais ouvia que via. A baguna era nos outros cmodos da casa. Criana no vem brincar em cozinha. O trabalho dobrado no ia ser meu. Era da Marlene sonhava acabar cantando no rdio , era do aspirador de p, era da colega dele, a enceradeira. Muito espevitada, muito pra frente, tambm metida a bacana. Mas s o brilho que ela deixava nos meus colegas do assoalho j me comovia.

At hoje eu no entendi por que que no se encera cabo de vassoura. A gente ia trabalhar,. Eu estou abrindo o corao. Comecei a falar, vou falando.

Oxal no me achem "cacete" Sou hoje um cavalo de pau. Observo as coisas, procuro entender. Muitas vezes no entendo, claro. Mas que o mundo dos homens mesmo confuso.

Vive da explorao dos outros mundos. O animal, o vegetal, o mineral, o csmico. Pega uma flor e cheira Colhe a flor e a leva namorada, num gesto gentil. Isso eu acho bonito. Mas pegar uma goiaba inocente, uma laranja inofensiva, uma pobre banana, que no faz mal a ningum, que estava sossegadinha no seu cacho, tomando sol De maneira nenhuma!

E eu nem quero pensar de que jeito elas vo acabar Mas o homem come tudo. Come animados, inanimados e desanimados. Na minha vida de. Parece que a natureza toda dominada pelo homem.

Madeira que o diga Felizmente madeira ele no come. Mas raro o fruto de rvore que lhe escapa. Mete a mo embaixo da terra e arranca, do fundo do cho, batata, inhame, aipim. No geral, cozinha, frita, assa, pe no fogo a Maria que o diga.

Folhas, gros, frutos. E at bichos. Triste, quem nasceu galinha! Infeliz, quem nasceu boi ou vaca! Desgraado, quem cair na rede!

Caiu na rede peixe, o homem come! At o leite dos bezerrinhos ele toma! J fui rvore. J fui cabo de vassoura. Hoje sou cavalo de pau. Tenho visto muita coisa. Tenho entendido muito pouco. Ou ser que eu sou burro e no cavalo? E a tal histria Eu comeo a contar uma coisa e me distraio, vou na moleza do papo e me distraio, esqueo o principal. Nos garotos de casa e nos garotos de fora. Eram todos mais ou menos iguais. Criana como bezerrinho, tudo muito parecido. J botam nome neles exatamente pra isso: o nico meio de diferenar.

Teu nome Mariozinho, t? O teu Iv, t bem? Quando eu chamar pelo nome vocs j sabem quem. A explicao simples. Tem criana no mundo pra chuchu. Chuchu eles comem tambm, vi a Maria descascar e pr na panela. Depois serviu com camaro, um bichinho meio avermelhado que eles pegam no mar.

Nem o mar escapa! Tiram at o sal da gua do mar! Mas, como ia dizendo, tem um dilvio de criana no mundo. S formiga tem mais Mas cada famlia tem duas, trs, no mximo. E como tudo mais ou menos parecido, pra evitar confuso e pra no ter que dar comida para as crianas dos outros gente s pensa em comer Combinam tudo. Eu acho que eles no tm muita imaginao. No sei como que os pais se arranjam pra saber qual o seu Joo foi o que eu mais conheci no meio de uma joozinhada que no tem fim.

E o negcio deve ser to difcil que eles inventaram tambm um tal de sobrenome. Tem Joozinho Simes. Tem Joozinho Pereira. Tudo porque tudo muito parecido. S com a prtica eu comecei a distinguir. No comeo fogo. Todos tm dois. Todos tm uma. O Renato tem dois braos? O Ivzinho tambm. A Marlia tem duas mos? A Claudinha tambm. Eles e elas, salvo pequenas diferenas, que nem d para notar, parecem todos sados da mesma oficina. Dedos, todos tm cinco em cada mo.

Pernas, cada um. Conheci um de uma perna s, mas foi desastre de automvel. Alis, desobedincia. Dona Sara sempre dizia: Cuidado quando atravessarem a rua. Lembrem-se do que aconteceu com Zequinha Mas a diferena s na cor. O resto tudo igual. Mesmo nmero de cabea, mesmo nmero de braos, mesmo nmero de ps, mesma capacidade de inteligncia, mesma capacidade de comer E o mesmo direito, claro. E pra mim, que no tenho preconceito de cor sou um cavalo de pau inteligente, superior a muita gente boa No meu tempo de rvore, a gente ficava observando sava passar.

Eu dava um galho, dava todas as folhas, pra quem soubesse me dizer quem era esta, quem era aquela. Passava uma, passava outra, passava mais outra. Uma delas voltava. Era uma, era a outra, era aquela outra ou era uma nova sava? Impossvel saber. Assim com as baratas: Assim com os sanhaos. Assim com os bem-te-vis. Assim, principalmente, com os urubus, que voavam muito alto, procurando bicho morto pra comer devem ter aprendido com os homens.

Assim com as cobras. Assim com os lagartos. Tinha que ser assim com as crianas Mas, como eu ia dizendo e mais uma vez me perdi, com a prtica comecei a distinguir.

E vou falar no Mariozinho, que foi o meu grande amigo no mundo da desobedincia e da travessura. Sou hoje um velho cavalo de pau. Pesquisar no documento. Ser mastro de navio Vem gente me conhecer de todos os cantos da terra Sabe quem foi Aleijadinho? Conte as suas palavras como se sentia o personagem sendo um cabo de vassoura. Transcreva do texto um trecho que retrate este sentimento. Saiba mais sobre o reflorestamento ambiental no Brasil.

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